segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Capítulo 13

- DONA AURORA -

Três dias depois...

Era sua última noite de férias na República Dominicana.

Gabriella achou ter visto alguém bem parecido com Klaus Gühmann no bar da ilha. Mas como ela já não o via há muitos anos, pensou estar enganada. E isso, a levou a pensar na noite em que eles se conheceram. Era Ano Novo e ela estava linda num vestido vermelho acetinado. Klaus havia se aproximado e se apresentado.

- Sou Klaus Gühmann, irmão de Steffi.

- Muito prazer senhor Gühmann.

- Pode me chamar de Klaus. Li sua entrevista, aliás, receba meus parabéns, todos por aqui só falam nisso esta noite.

- Muito obrigada!

- Posso saber como você teve esta idéia brilhante?

-Não foi muito fácil. No começo do mês eu assisti à retrospectiva e vi a tragédia ocorrida no início deste ano nas minas de carvão na Áustria. Pensei que nós sempre noticiamos o momento da tragédia e achei que seria interessante saber o que aconteceu com essas famílias que perderam os seus maridos nesse acidente. Na mesma semana voei pra lá para entrevistá-los. Entrevistei o dia-a-dia dessas nove mulheres que ficaram sem os seus maridos. Como elas vivem e como elas procuram soluções na educação dos filhos que não querem de jeito nenhum seguir a profissão que seus pais tiveram. O sofrimento ainda é grande, principalmente porque nenhuma ajuda humana junto à tecnologia pôde localizá-los embaixo da terra.

-Achei interessante o que você escreveu sobre essas mulheres em relação delas manterem um ritual de vida como se eles fossem voltar a qualquer momento.

-Verdade, elas não querem pensar que eles saíram para trabalhar e que não voltarão nunca mais. Parece que o tempo para elas parou naquele dia do deslizamento.

- Como disse antes a você: Matéria exemplar.

Com este trabalho Gabriella ganhou a confiança dos chefes em seu trabalho. E foi assim que ela começou a perceber os olhares de Ben por ela.

Não quero pensar em Ben agora.

Já era tarde quando Gabriella voltou ao seu quarto de dormir. Ela havia bebido um pouco para esquecer as lembranças de Ben. Duas semanas de férias naquele paraíso e mais de três anos de distância a separavam de Ben, mas ela ainda não conseguia esquecê-lo.

Seus sonhos geralmente eram agitados. Ela sonhou com seu encontro com Ben em Freiburg. Eles se esbarraram em um café. Sorriram de felicidade. Marcaram encontro pra noite. Ela se produziu toda num vestido verde de camurça. Conversaram a noite inteira. Riram, beberam, dançaram. Eles eram felizes. Uma felicidade que só existia nos sonhos dela. Acordar seria pesadelo. Melhor continuar dormindo. Ao menos, assim ela era feliz.

O dia passou sem muitos atrativos, logo ela estaria entrando no avião que a levaria de volta para casa.

Era quase noite na República Dominicana. Logo seu avião levantaria vôo. Ela não sabia se estava alegre ou triste. As duas semanas de férias não foram suficientes para que ela pudesse esquecer o lado triste de sua vida.

Mas, fazer o quê? A vida precisava continuar...

A aeromoça se aproximou pediu-lhe delicadamente que afivelasse o cinto de segurança, pois logo estariam no ar.

Gabriella pôde sentir quando o avião em sua força empinou a parte da frente e começou a levantar, logo depois, numa curva bem acentuada pôde contemplar ainda o mar num dourado quase escuro pelos últimos raios de sol no horizonte. Aquele lugar era realmente um paraíso, seria difícil esquecer aqueles dias ali, às pessoas, o ritmo do merengue, suas bebidas tropicais, as frutas, os coqueiros, o sol...

Os passageiros, mesmo em suas poltronas não podiam sentir-se à vontade, tudo por causa do ângulo da curva.

Gabriella observou um pouco as pessoas dentro do avião para esquecer o incômodo que lhe causava estar com o corpo inclinado. Uns liam jornais, algumas mulheres liam revistas, outros conversavam, outros comiam chocolate ...

Foi quando se ouviu o grito de uma mulher.

-Oh, meu Deus! Esse avião não está conseguindo sair desta curva, estamos descendo ao invés de subir! O mar está à nossa frente, nós vamos cair!

A voz da mulher era de verdadeiro pânico.

O alvoroço foi grande, todos queriam através de suas janelas ver se realmente isso era verdade.

-Ela tem razão. - gritou um homem colérico. - Vamos cair, vamos cair no mar...

Gabriella não ouvia mais nada, a tensão que se formou no interior do avião era grande demais. Alguns começaram a gritar, outras a orar, outras a chorar, outros se abraçaram, outras apertavam os braços das poltronas talvez buscando segurança.

Gabriella estava como que em transe ao ouvir a palavra mar, a palavra água...

Como num passe de mágica ela foi transportada ao passado. Um passado quando ela era criança.

Eram quase cinco e trinta da manhã e alguém bateu palmas no portão. Anton Kolberg esticou o pescoço para ver quem era pela fresta da janela de seu quarto que dava para a frente do portão. Mas nada pôde ver porque chovia bastante, a pessoa do lado de fora resolveu gritar:

-Sr. Kolberg! Kolberg!

Enquanto o senhor Kolberg vestia uma roupa rapidamente, pois não queria responder para não acordar a menina que dormia. Ele pegou o guarda-chuva e dirigiu-se para o portão.

-Desculpe-me vir acordá-lo tão cedo senhor Kolberg, mas é que aconteceu uma desgraça. - Dizia a mulher aflita, enquanto ele a fazia entrar na casa e ao mesmo tempo pegava a toalha que sua esposa tinha nas mãos para secar os pés que haviam se molhado.

-Querida, não acha melhor fazer um café para a senhora Leoni?

Após o café e mais controlada a senhora Leoni queria contar-lhes o que a trouxe ali tão cedo, quando de repente eles ouviram um grito forte de criança.

Imediatamente entraram na sala e encontraram a menina de nove anos que se agarrou à mãe chorando.

-O que aconteceu filhinha? Vamos, conte pra mamãe. Não precisa ter medo. - A menina sonolenta tentava coordenar os pensamentos.

-Vamos filha, o que foi? Foi um sonho mau? - A menina encolheu-se mais ainda mediante a pergunta da mãe.

-O que você sonhou?

-Eu sonhei, eu sonhei...

De repente a pequena Gabriella olhou para os pés de seu pai, parou de soluçar, levantou-se do colo, ficou parada bem em frente a ele e perguntou:

-Pai, por que é que você está descalço?

Não dava para acreditar, todos preocupados com ela e ela perguntava ao pai porque é que ele se encontrava descalço.

-O homem do meu sonho também estava descalço, ele tinha os pés brancos, as unhas e a boca roxas, ele estava todo molhado e tremendo de frio. Ele me dizia que estava morto, que não adiantava mais procurar por ele. Ó papai, eu tenho tanto medo, medo de dormir e ele voltar pra me pegar.

Enquanto a menina narrava o ocorrido em seu sonho, a mulher que batera palmas no portão começou a se benzer e a fazer o sinal da cruz.

-Meu Deus! Como ela podia já saber que ele está morto?

-Mas quem está morto, pelo amor de Deus?! - quis saber a senhora Kolberg.

-O senhor Josef, marido da dona Aurora que mora na rua aqui de cima.

-Você viu filhinha, o senhor Josef em seus sonhos?

A menina balançou a cabeça negativamente e respondeu:

-Não sei, o homem dos meus sonhos era um homem alto, branco, eu só o vi até a boca. A boca parecia...parecia..., eu não sei, eu não conheço esse homem do meu sonho.

E lembrando-se do que a vizinha viera fazer ali a senhora Kolberg indagou:

-É mesmo verdade que ele está morto? - fez a pergunta tapando os ouvidos da menina.

A vizinha só balançou a cabeça afirmando pois, seus olhos estavam cheios de lágrimas.

Depois que colocaram a pequena Gabriella para dormir novamente, eles voltaram para a cozinha. A senhora Kolberg preparava agora um chá, colocou biscoitos amanteigados em um prato e os levou à mesa. A senhora Leoni continuava a narrativa.

-Já há vários dias chove torrencialmente em toda a cidade. Há lugares em que a água já até invadiu os subterrâneos. Dizem que lá para os lados de Campeoni, o caminho das mulheres foi todo bloqueado porque rolaram muitas pedras. As ruas de baixo são água pura, ninguém sabe mais o que é o Lago di Garda ou rua. Todo mundo diz que isso nunca aconteceu antes. Os tempos estão mesmo mudados para este lado de cá..

-E como foi isso dele morrer? – quis saber a senhora Kolberg.

-Como vocês sabem meu marido e o senhor Josef trabalham juntos há alguns anos ou melhor trabalhavam, que Deus o tenha em bom lugar. Ontem a chuva engrossou de tal maneira que logo veio a notícia pelo rádio que seria melhor voltar para terra firme e dar por encerrado as atividades no mar. Pois é, todos entraram na balsa inclusive meu marido. Ninguém sabe explicar como aconteceu, porque tudo foi tão rápido, que quando viram, todos estavam n'água e cada um tentando salvar a própria pele. Seu Josef coitado, não sabia nadar, tentaram fazer uma corrente humana, mas foi impossível chegar até onde ele estava por causa da correnteza. Tudo o que viram foi ele sendo arrastado cada vez mais e seus gritos alucinantes pedindo socorro.

-Meu marido diz que até agora pode escutar a voz dele e o desespero dos colegas de trabalho tentando salvá-lo. Meu esposo me disse que a profundidade do lago onde o senhor Josef se encontrava era grande e que ali só tem lama e por causa disso, ninguém podia ir mais adiante com a corrente humana que haviam feito, porque senão os outros morreriam também junto com ele.

-Assim que chegaram em terra firme eles pediram ajuda pelo rádio mas por causa do mau tempo eles chegaram lá quase uma hora depois e nada mais tinham a fazer a não ser tentar achar o corpo. O que parece que ainda não conseguiram. E o que dói, senhor Kolberg, é saber que ele passou a semana toda falando que estava doido para chegar em casa para ver a “Sereia” dele. Como todo mundo sabe, era assim que ele chamava dona Aurora por causa dos cabelos longos que ela tem.

-E agora coitada, ela está sozinha pra criar todos os filhos. Se com marido a vida já é dura, imagina sem marido pra ajudar. E como ela está? – quis saber a senhora Kolberg.

-Chora desde a hora que soube do acontecido, ela já quis ir até lá, mas o filho mais velho não deixou. Ela está inconsolável, dá pena de ver.

-Também pudera!

-Eu estou aqui para perguntar se podemos contar com a Mãe de Todos pra ajudar a levar o pessoal da rua para o enterro, se tiver. Alguns acham que nem vai ter, pois o corpo ainda não foi encontrado.

-Meu Deus! Quanta desgraça para uma pessoa. - disse o senhor Kolberg em profunda tristeza.

Por volta das duas horas da tarde a pequena Gabriella aproveitando que a chuva diminuíra, fugiu sem que sua mãe percebesse e foi até a casa da viúva.

A menina sabia que ela morava no começo da rua.

O portão de ferro pintado de verde estava aberto, ela passou por um pequeno jardim e chegou até a entrada de uma pequena varanda com um chão liso, vermelho e encerado. A casa era toda branca por fora e os muros em redor ainda estavam no tijolo vermelho.

Gabriella dirigiu-se até a janela e pôde ver que ali era o quarto da mulher e que ela se encontrava sozinha sentada com as costas recostadas na cabeceira da cama. Os cabelos bem longos estavam soltos, eles iam até abaixo das nádegas.

A menina estava tão compenetrada em seus pensamentos que nem sentiu que havia entrado no quarto onde estava a mulher que chorava silenciosamente a sua dor.

Dona Aurora ficou olhando a menina na porta.

- É verdade que você sonhou com o meu Josef? - perguntou a mulher calmamente, com medo de assustar a menina.

-Eu não sei se era ele...

-Mas ele estava bem? - quis saber a mulher.

-Eu não sei, a senhora deve saber. Não é a senhora uma sereia? A senhora foi até lá buscá-lo não é? Pra onde a senhora o levou? Todo mundo fala que a senhora era a sereia do seu marido. Minha mãe sempre conta que toda sereia quando gosta muito de um homem ela o pega e o leva para o fundo do mar, pois só assim eles podem viver juntos para sempre.

Nas palavras da menina havia tanta pureza e tanta inocência no que dizia que a mulher por alguns instantes esqueceu-se do seu sofrimento e entrou também no mundo dos sonhos da pequena, tão frágil de se ver, tão magrinha, pernas de saracura como por todos era chamada. Seria tão bom ser menina novamente, pensou a mulher, para não precisar viver aquele dia tão terrível. Ah! Se ela soubesse que a vida naquele dia lhe tiraria toda a sua alegria de viver, todo o seu prazer e encanto de ser, todo o gosto adocicado dos mortais... o seu homem amado. Quem possivelmente lhe chamaria de sereia e lhe tocaria os cabelos como ele fazia? Com certeza ninguém, nunca mais pertenceria a uma outra pessoa.

De repente assustou-se um pouco quando sentiu as mãozinhas tão pequenas da menina tocando-lhe os cabelos.

-A senhora tem mesmo todo esse cabelo de verdade?

-Sim, você gosta?

-Gosto. Mas porque a senhora os prende?

-Não é bom que uma mulher casada ou viúva como agora eu sou, ficar saindo por aí com os cabelos soltos.

-E por que não? Só porque é casada? Então eu nunca vou querer me casar, ou então nunca vou ter os cabelos longos. - retrucou a menina n um sorriso maroto.

A mulher ficou olhando a pequena e a achou tão inteligente para aquela idade. Sentiu até vontade de rir pela resposta tão espontânea dela, mas com certeza os músculos do seu rosto não se moveriam para isso, e nem o seu coração. Pois, na verdade, se ri com o coração e então ele reproduz na boca e no rosto toda a alegria interior e o seu interior no momento estava muito triste.

-É verdade que ainda não encontraram o corpo? Como é que vai ter enterro? Crianças são assim, perguntam cada coisa...

- Meu Deus! - pensou a mulher - Mas que garota danadinha de esperta. Como ela sabe de tudo e como está tão bem informada.

-Não vamos fazê-lo até que o encontremos. - respondeu Dona Aurora carinhosamente.

-E se não o acharem? - insistiu a menina.

A mulher voltou a chorar.

-Ao menos o corpo dele eu quero de volta. - um de seus filhos entrou no quarto trazendo uma notícia:

-O prefeito da cidade decretou estado de calamidade pública, teremos tempos difíceis mãe, tudo por causa da enchente.

Para dona Aurora e seus filhos pouco interessava o que o prefeito da cidade tinha decretado. Tudo o que eles sabiam é que haviam sido atingidos e que agora não poderiam receber nenhuma ajuda do governo se o corpo não fosse encontrado.

Três longos e agonizantes dias se passaram para aquela família, lembrava-se Gabriella.

A notícia de que o corpo fora achado, trouxe uma dura realidade de que realmente Josef nunca mais voltaria para casa. Parecia que até aquele momento tudo era somente um pesadelo, um sonho mau.

Quando ela viu o caixão descer com o corpo do seu amado ela olhou em redor e um medo enorme tomou conta dela. Olhou para os filhos e percebeu o quanto teria que ser forte ou ao menos se fazer de forte para se tornar aquilo que ela precisaria ser. Mas no quê? Como ser preciso ser? Ela se perguntava.

Dona Aurora sabia que a partir daquele dia ela poderia correr o mundo inteiro e procurar e procurar, mas nunca mais iria achar o marido, nunca mais iria ouvir a sua voz. Nunca mais poderia tocar-lhe, como ela gostava de fazer.

Ela continuava olhando para seus filhos que estavam a seu lado. Passou os braços em volta deles e eles a abraçaram e num círculo eles juntaram as cinco cabeças e ali choraram a sua dor. As lágrimas, se confundiam com a chuva que caía. Gabriella jamais esquecera dessa cena.

Tudo naquela família teve que ser alterado, lembrava-se ela. O filho mais velho, Josef de 15 anos, depois da escola, passou a trabalhar durante o dia numa fábrica, o outro de 13 anos Gianfrancesco, ia para o centro da cidade onde havia muito movimento para engraxar os sapatos das pessoas que passavam pelas ruas. Aos sábados e domingos ele aproveitava o movimento da feira e com o seu carrinho de madeira levava as compras das mulheres por uns poucos trocados.

A filha Verona, de 11 anos, cuidava da casa e da irmã menor, Vera, de 9 anos, que juntas faziam todo o serviço e as compras junto com a mãe, pois esta passou a lavar e a passar muita roupa para fora, dia e noite sem parar.

A vida ficou dura e pesada para cada um deles.

Dois anos haviam se passado. As pessoas da rua percebiam que eles nunca mais usaram uma roupa nova, nem mesmo o mais velho que crescia alucinadamente e as calças já lhe tocavam as canelas. Nunca mais eles brincaram na rua com os filhos dos vizinhos porque eles estavam sempre tão cansados que não tinham mais vontade de se juntar às outras crianças e também para eles essa fase já havia passado, nenhum deles se achava mais crianças. Somente Vera a filha menor às vezes brincava com a única boneca que tinha quando Gabriella sua única amiguinha aparecia por lá.

Somente hoje, 24 anos depois é que Gabriella pôde lembrar-se de toda aquela história detalhadamente, exatamente porque o seu avião estava indo de encontro ao mar, de encontro às águas. As mesmas águas que haviam levado o senhor Josef.